CONSCIENTES DO TRATAMENTO
16.04.2023
| Avanços na ciência e direitos |
Mesmo com as regras de isolamento social decorrentes da pandemia do novo coronavírus, pessoas com coagulopatias seguem conscientes da importância de não interromper o tratamento. Conheça a história de alguns deles
Por Leila Vieira e Madson de Moraes
A pandemia do novo coronavírus (doença conhecida pela sigla Covid-19) mudou a rotina de toda a população no Brasil. Para mostrar um pouco do impacto da pandemia no dia a dia das pessoas com hemofilia e outras coagulopatias, a revista Fator Vida conversou com quatro pessoas com coagulopatias hereditárias em diferentes regiões do Brasil. Vinícius mora em Barbacena, no interior de Minas Gerais; Jamerson Elias vive em Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco; Antônio Almeida mora em Pau dos Ferros, em Rio Grande do Norte; já Suely tem uma filha com deficiência de fibrinogênio congênita e mora em São Luís, no Maranhão.
Apesar de terem impactos diferentes em suas rotinas, eles contam com o apoio da Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) e as associações estaduais filiadas para que sigam com a autonomia em seus tratamentos. “Temos mantido contato frequente com a Coordenação-Geral de Sangue e Hemoderivados (CGSH), do Ministério da Saúde, para garantir a profilaxia e ampliar o tratamento domiciliar para todas as pessoas com coagulopatias hereditárias e, consequentemente, estimular a autonomia, independência, inserção social e qualidade de vida para as pessoas com coagulopatias”, destaca a presidente da FBH, Tania Maria Onzi Pietrobelli.
“NÃO PODEMOS ABRIR MÃO DA PROFILAXIA”
Desde que nasceu, Vinícius de Barros, natural da cidade Barbacena, localizado no interior de Minas Gerais, visita regular- mente a cidade de Juiz de Fora. Portador de hemofilia do tipo A grave, ele percorre uma vez por mês os mais de 100 quilômetros que separam as duas cidades para retirar sua medicação no hemocentro local. A assistência para as pessoas com hemofilia é disponibilizada, em Juiz de Fora, pela Fundação Hemominas.
Sua família descobriu que ele era portador da coagulopatia cedo e, por ter vivido uma época em que não havia tratamento preventivo (profilaxia), ele convive com sequelas articulares e, por isso, ficar na fila de um banco ou uma hora em pé já é motivo para desenvolver hemorragias internas em seus joelhos e tornozelos. Pelas limitações físicas, Vinícius conta com o apoio do pai, idoso, para ir de carro retirar a medicação. Mas, pelo fato de o pai ser do grupo de risco para Covid-19, essa ida ao hemocentro se tornou desafiadora. Além disso, conta ele, os ônibus intermunicipais que fazem o trajeto entre as cidades paralisaram por um tempo.
Consciente de que não pode interromper seu tratamento, ele buscou informações junto à FBH. “Quando a pandemia começou, o Hemocentro de Juiz de Fora ainda não estava liberando fator para o período de dois meses. Quando recorri à Federação para saber como seria o tratamento domiciliar, soube que ela já estava atuando junto à Coordenação-Geral de Sangue e Hemoderivados (CGSH) para ver a possibilidade de estender o tratamento domiciliar para dois meses. Depois da recomendação da CGSH, tenho ido de táxi a cada dois meses para buscar o fator. A pandemia nos trancou em casa, mas não podemos abrir mão da profilaxia”, diz.
“PANDEMIA MUDOU MINHA ROTINA”
O dia a dia de Jamerson de Oliveira em Jaboatão dos Guararapes, cidade localizada na Região Metropolitana de Recife, é outro em razão do coronavírus. Jamerson, de 35 anos, é portador de hemofilia A grave. Antes de a pandemia ser decretada no Brasil e com ela todas as recomendações de isolamento social, ele retirava na Fundação de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco (Hemope) a medi- cação para fazer a profilaxia em casa, mas durante a pandemia, a dispensação para tratamento domiciliar foi estendida para dois meses.
“Como eu já tenho um convívio grande com a equipe de saúde do hemocentro, conheço bem os esforços que fazem para melhorar nossa qualidade de vida, facilitando nosso acompanhamento do tratamento multidisciplinar com agendamento prévio para diminuir a necessidade de deslocamentos frequentes. Além disso, a dispensação de tratamento domiciliar de um mês para dois meses foi um grande ganho. Torço para que após pandemia esse modelo continue”, diz.
Mesmo com a facilidade dos dois meses de tratamento domiciliar, Jamerson precisará encarar um velho desafio: cadeirante, em razão da falta do tratamento preventivo, ele precisa enfrentar a falta de acessibilidade no transporte público junto ao medo de contrair a Covid-19. “A locomoção, pelo fato de eu ser cadeirante, já é difícil pela falta de acessibilidade. Com a pandemia, essa dificuldade aumentou porque, além da lotação no transporte público seguir sendo igual, os valores das corridas de carros por aplicativo e táxi triplicaram.”
“TENHO REALIZADO MEU TRATAMENTO NORMALMENTE”
Pau dos Ferros, é uma cidade do Rio Grande do Norte que fica a cerca de seis horas de Natal. É lá que mora Antônio Almeida, de 26 anos, portador de hemofilia A grave. Ele tem conseguido, durante a pandemia, seguir com a profilaxia em casa. O fato da cidade onde mora ter um hemocentro facilita a continuidade do tratamento. “Durante a pandemia, tenho realizado meu tratamento normalmente como já vinha fazendo seguindo as recomendações da FBH e dos médicos”, diz.
A ida ao hemocentro era feita a cada semana, mas, por conta do isolamento social, ele conseguiu doses extras do fator para ficar, em média, 15 dias em tratamento em casa sem ter de voltar ao local. “Eu mesmo que aplico em casa, então, só vou até o hemocentro para retirar os remédios”, conta.
A família descobriu que Antônio tinha a coagulopatia aos três anos de idade após ele sofrer um corte profundo no pé e ter um sangramento intenso. Por conta do ferimento, precisou de atendimento especializado em Natal, onde foi diagnosticado. Na vida profissional, ele conta que não foi afetado pelas alterações impostas pelo isolamento social principalmente porque já trabalhava em esquema home office. Formado em análise e desenvolvimento de sistemas, ele vem trabalhando para abrir uma empresa em parceria com os amigos.
“FEDERAÇÃO ESTÁ NOS AJUDANDO”
Em São Luís, capital do Maranhão, a dona de casa Maria Suely de Souza enfrenta uma luta que já dura seis anos desde que Ana Mariah, sua filha, nasceu. Ana é portadora da afibrinogenemia congênita, um tipo de coagulopatia hereditária que tem como principal sintoma os sangramentos, que podem ocorrer no sistema nervoso central, além de hematomas espontâneos ou pequenos traumas superficiais ou internos. A batalha de Suely é conseguir a medi- cação em quantidade suficiente para a profilaxia adequada da filha junto ao Centro de Hemoterapia e Hematologia do Maranhão (Hemomar). Antes da profilaxia, os pais de Mariah se revezavam durante a noite com o cuidado de observar se poderia ocorrer alguma hemorragia interna durante seu sono. Toda essa situação abalou emocional- mente a família inteira.
Suely relata que foram muitas as idas para a UTI desde que Mariah foi diagnosticada quando tinha meses de idade. “Recebemos a medicação para tratamento, mas somente nas ocorrências dos sangramentos. Nunca recebemos o medicamento em quantidade suficiente para profilaxia e, por isso, foram várias internações na UTI”, diz. Na pandemia, a ida ao Hemomar para buscar a medicação ficou mais difícil. “Onde moramos não há boas opções de transporte público e precisamos nos virar para conseguir dinheiro e pagar um carro para levá-la. Algumas vezes minha irmã nos ajudava, nos levando de carro ao Hemomar e nos deixando em casa. Atualmente estamos eu e meu marido sem emprego fixo e vamos fazendo bicos”, relata Suely.
Foi a partir da última ida de Mariah para UTI que Suely decidiu procurar ajuda para tentar receber o tratamento profilático em quantidade adequada para a filha. Ela encontrou nas mídias sociais da FBH o vídeo com o depoimento de Diandra, mãe do Théo, que se sensibilizou e a orientou a procurar a Federação e relatar sua história. A FBH iniciou os contatos com o Hemomar e a Coordenação-Geral de Sangue e Hemoderivados para conhecer a situ- ação de Suely e, juntos, buscarem uma solução. “A FBH ajudou muito! Falei com a dona Tania e ela verificou a questão de recebermos o medicamento para Mariah em quantidade suficiente para profilaxia. E, menos de um mês após a FBH intermediar os contatos entre as instituições e com as justificativas dadas pelo Hemomar para a CGSH, Mariah já está recebendo a profilaxia e livre para brincar, sem correr riscos”.
RECOMENDAÇÃO PRINCIPAL É QUE NÃO SE DEVE PARAR A PROFILAXIA
¨A CGSH/MS recomenda que os hemocentros aumentem a dispensação de fatores de coagulação para o tratamento domiciliar para, dessa maneira, diminuir os deslocamentos até os Centros de Tratamento de Hemofilia”, reforça a presidente da FBH, Tania Maria Onzi Pietrobelli.
“Pessoas com hemofilia e outras coagulopatias hereditárias não se enquadram no grupo de risco da Covid-19, só se tiverem outras comorbidades como obesidade, diabetes ou pressão alta, entre outras. A recomendação principal é que não se deve parar a profilaxia”, afirma a hematologista e gerente do Ambulatório de Coagulopatias Hereditárias da Fundação Hemocentro de Brasília, Dra. Melina Swain.
“Alguns, por não estarem saindo de casa, tem diminuído por conta própria a profilaxia. Eles devem manter a profilaxia por- que, mesmo em casa, pode acontecer algum sangramento”, pontua a hematologista pediátrica do Serviço de Hemofilia e Coagulopatias Hereditárias da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Dra. Christiane Maria da Silva Pinto.