DOS PRIMEIROS SINTOMAS AO DIAGNÓSTICO
16.04.2023
| Avanços na ciência e direitos |
Pela falta de investigação de alguns serviços médicos, a caminhada para que pais descubram a hemofilia em seus filhos pode ser árdua e longa
Por Daniele Amorim
Demorou dois anos para que Mara Nunes, de 29 anos, pudesse descobrir o motivo do surgimento de hematomas e do sangramento contínuo após algumas quedas e cortes do filho, Lorenzo. Depois de passar por diferentes especialistas e hospitais, Mara recebeu a resposta do diagnóstico: o filho tinha hemofilia A grave. E o que parece ser um caso único, na verdade, é uma realidade comum no Brasil.
A equipe do Hemocentro do Estado do Rio Grande do Sul (Hemorgs), em Porto Alegre, apresentou durante o Congresso Brasileiro de Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular (Hemo 2019) o trabalho Revisão da incidência, idade ao diagnóstico e presença de casos de novo de hemofilia A grave no estado do Rio Grande do Sul. A pesquisa apontou que a idade média para a descoberta da hemofilia em casos onde não há nenhum familiar com a patologia, como é o caso de Lorenzo, é de 20 meses.
Por desconhecimento dos pais sobre a coagulopatia ou até de profissionais que atendem em ambulatórios, a hemofilia pode demorar para ser descoberta como a causa do quadro em casos onde não há histórico familiar. Então as suspeitas clínicas se desdobram em outras justificativas para os episódios resultantes da coagulopatia, como hematomas expressivos após traumas resultantes de uma aplicação de uma vacina ou sangramento excessivo causado por um corte, por exemplo.
Esse cenário também é apontado pela pesquisa do Hemorgs. De acordo com registros do banco de dados do sistema Hemovida Web Coagulopatias, 56% dos casos reportados entre 2009 e 2018 mostram que a hemofilia A foi diagnosticada em pacientes que nunca souberam de um histórico familiar em relação à coagulopatia. Do grupo total analisado, a maioria (93%) foi motivada a ir ao hospital em busca de respostas após um sangramento contínuo. O primeiro sintoma de Lorenzo apareceu na forma de um machucado resistente depois da aplicação de uma vacina. Na época, ele tinha 10 meses e os médicos optaram por fazer um procedimento cirúrgico para sua retirada. Mas, logo após a intervenção, veio a surpresa: ele sangrou por muito tempo e foi realocado para a Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Depois de alguns dias sob cuidados e medicamentos, Lorenzo foi para casa e a justificativa para seu quadro foi uma “reação aparentemente normal ao procedimento”.
Mas, como é natural na vida de uma criança que aprende a se movimentar sozinha, Lorenzo cortou a língua após uma queda no banheiro de casa e, novamente, veio o sangramento excessivo. Seus pais o levaram ao hospital para conter o machucado, mas, como a ferida não cicatrizou, foram mais três idas ao ambulatório para refazer os pontos do curativo.
Com a perda de sangue constante, o menino ficou novamente internado e foi encaminhado para o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Só após alguns exames clínicos é que veio a resposta para todas as perguntas: o diagnóstico de hemofilia A. “Quase perdemos o Lorenzo duas vezes por- que não sabíamos sobre a hemofilia”, relembra a mãe.
“FALTA INFORMAÇÃO GERAL PARA TODOS”
A hematologista do Serviço de Oncologia Pediátrica do Hospital da Criança Santo Antônio, parte do Complexo Santa Casa de Porto Alegre, Dra. Laura Garcia de Borba, é uma das profissionais que atendem, em um momento posterior, as pessoas que chegam à Emergência com suspeita de alguma coagulopatia. “Eles fazem o acolhimento e a avaliação inicial. Ficamos de sobreaviso quando há uma sus- peita”, explica. Como nos casos relatados pela pesquisa do Hemorgs, a profissional também atende pais que já notaram episódios de sangramento contínuo em seus filhos, mas que não foram diagnosticados corretamente. Um dos casos mais emblemáticos dos quais Laura se recorda foi um de hemofilia descoberta em um adolescente.
“Falta informação geral para todos, mesmo na formação médica. As pessoas se apegam muito ao histórico familiar e até ao que pode acontecer, mas não é uma condição essencial para o diagnóstico. Isso acaba desvalorizando a investigação de coagulopatia”, reforça Laura. Seu trabalho consiste na investigação dos casos já identificados, o motivo da ida ao hospital, os históricos de sangramentos e casos na família. Feita a análise, o paciente é encaminhado para fazer o acompanhamento no hemocentro mais próximo, onde haverá a liberação de fator conforme a necessidade. No caso de Lorenzo, ao ser diagnosticado pelo Hospital de Clínicas, ele foi encaminhado para acompanhamento no Hemorgs.
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Uma das profissionais que o acolheram nesse primeiro momento no atendimento do Hemorgs foi a enfermeira Maria Lucia Silva. Ela explica que, após a chegada da criança, foi feita uma pesquisa de seu histórico de hematomas, dados, informações sobre sua vida e uma coleta de sangue. Há também uma consulta com um hematologista pediátrico para orientar os pais sobre a hemofilia e a maneira como a medicação deve ser conservada. Mara relembra quando conversou pela primeira vez com os especialistas do Hemocentro: “No começo, pensamos que ter a hemofilia faria com que o Lorenzo tivesse outra doença. Mas, depois que chegamos ao Hemorgs, nos explicaram tudo direitinho”.
Como é normal os pais se assustarem com a informação de que os filhos irão conviver com a hemofilia, o trabalho multidisciplinar também é primordial. Além do contato com os hematologistas, enfermeiros, assistentes sociais e fisioterapeutas também estão a postos para esclarecer dúvidas e auxiliar os pais nessa nova etapa da criança. “Acolhemos a criança e a família. Não falamos apenas sobre a hemofilia. Queremos entender como ela é na escola, se brinca, qual é sua rotina. E, por meio do que nos contam, tentamos mostrar como é a hemofilia nesse contexto”, explica a fisioterapeuta do Hemocentro de Porto Alegre, Giovana Diaz.
Como Lorenzo mora próximo ao Hemocentro, sua mãe o leva semanalmente para fazer a profilaxia. Além disso, uma vez a cada seis semanas, ele é acompanhado por uma equipe multidisciplinar. Essa rotina será repetida até o primeiro ano da descoberta da coagulopatia. Também há uma atividade pensada nos familiares dentro do Hemorgs; Mara participa regular- mente de um encontro de pais para troca de experiências.
DIAGNOSTICADO COM VON WILLEBRAND AOS 65 ANOS
Em 2008, o aposentado Nilson Motta recebeu uma notícia que mudaria sua vida. Aos 65 anos, ele começou a apresentar frequentes sangramentos nasais (epistaxes), que costumava ter desde jovem, mas com uma frequência bem espaçada — e bastava fazer uma com- pressão no nariz para estancar o sangue. Mas agora, em uma fase da vida que deveria ser de tranquilidade, os sangra- mentos se tornaram mais frequentes e intensos. Começaria ali uma longa caminhada por diferentes médicos da rede pública e privada de saúde, algumas cirurgias pelo caminho, como uma feita no nariz, além de muitas complicações pós-cirúrgicas que afetavam muito sua qualidade de vida, para que Motta fosse finalmente diagnosticado com a doença de von Willebrand. O diagnóstico foi confirmado no Hemocentro de Recife (Hemope).
Motta chegou a ser submetido a uma cirurgia de vesícula mesmo sem saber que tinha a coagulopatia. Era uma cirurgia prevista para durar 40 minutos, mas que durou mais de três horas. “O médico saía suado, dizendo que meu pai tinha tido um sangramento no fígado, eles tentavam cauterizar e não conseguiam. O sangue sempre ficava fluindo mesmo com a cauterização”, lembra Micheline Motta, filha do aposentado que o acompanhou durante toda a longa jornada até a descoberta do diagnóstico.
Hoje, Micheline se recorda de todo o suporte médico e o atendimento competente da equipe de hematologistas e enfermeiras do Hemope. Atualmente, Nilson tem uma vida sem sangramentos. “Muita gente depende daquele hemocentro. Eles têm um compromisso tão grande com o paciente”, lembra a filha, agradecida. O maior problema que ela e o pai precisaram enfrentar, e que segue sendo a grande dificuldade de vários pacientes tardiamente diagnosticados, é a carência na formação do pessoal de saúde para os problemas hematológicos. “O desconhecimento nos faz perder muito tempo até chegar a um diagnóstico. Demos muita sorte em ter profissionais sensíveis que nos sinalizaram essa necessidade de uma análise em hospital de referência como o Hemope”, conta Micheline.
A Federação Brasileira de Hemofilia (FBH) tem atuado em diversas frentes para dirimir situações como essas. Por meio dos projetos educativos e ações de Advocacy, a FBH promove capacitação das associações estaduais de pacientes, programas para disseminação de informações a pacientes, familiares e profissionais da saúde, ações em Advocacy para influenciar a melhoria das políticas públicas, entre outras. “Seguiremos em 2020 com uma forte atuação em todas as frentes para garantir e ampliar o acesso ao melhor tratamento possível aos pacientes com coagulopatias”, comenta a presidente da FBH, Tania Maria Onzi Pietrobelli.