VENCENDO A HEMOFILIA
16.04.2023
| Avanços na ciência e direitos |
A história de luta—e vitórias!—de quem convive com a hemofilia há 60 anos, antes mesmo de haverum tratamento adequado para as pessoas com a coagulopatia no Brasil
Por Leila Vieira
Antes de completar o primeiro ano de vida, os pais do gaúcho Ivar Rizzi descobriram que ele tinha hemofilia A. Essa revelação ocorreu na década de 1960, e já cedo ele aprendeu que precisaria ter atenção redobrada com a saúde. Dos sete irmãos da família Rizzi, dois conviveram com a hemofilia desde criança. Naquela época, o único tratamento exigia constantes transfusões de sangue para os pacientes. “Meu irmão mais velho tinha hemofilia e através do diagnóstico dele foi mais fácil definir o meu”, explica Ivar.
Crescer com a hemofilia foi uma tarefa bem difícil para os dois meninos e para a família de agricultores do sul do País. Ivar nasceu em Guaporé, no Rio Grande do Sul (RS), a 192 quilômetros de Porto Alegre. Os Rizzi moravam na zona rural da cidade, e o trajeto até o hemocentro mais próximo incluía uma viagem a cavalo de 30 minutos até o ponto para pegar a condução que levaria ao centro de atendimento. A dificuldade para conseguir transporte rápido e os recursos necessários para o tratamento de duas crianças com hemofilia fizeram com que toda a família se mudasse para Passo Fundo, no norte do estado, local onde vive até hoje.
Nas décadas de 1960 e 1970, sem medicamentos específicos para realizar a reposição do fator, os pacientes com hemofilia precisavam receber transfusão de sangue total para estancar as hemorragias. Depois, o tratamento evoluiu para plasma e, mais tarde, para crioprecipitado. “Ia ao hemocentro fazer transfusão sempre que sentia dor, já que só se tratava depois da ocorrência de uma hemorragia. Às vezes, até segurava um pouco a dor, porque morava no interior e era complicado o desloca- mento. Aos finais de semana, também não tinha plantões com regularidade, tudo era mais difícil”, relembra Ivar.
Também eram comuns os quadros de internações frequentes. “Recebi bastante sangue. Tive diversos episódios de hemorragias ativas, passei por três vezes no CTI para controlar os sangramentos. Como ainda não existia medicamento eficiente, a única coisa que tomava era cal- mante para aliviar a dor. Na época, nem gelo sabiam que dava para pôr. Teve vezes em que eu e meu irmão nos internamos juntos”, detalha Ivar. Até mesmo enfrentar um simples procedimento dentário poderia desencadear consequências graves para a pessoa com hemofilia e muitos morriam por extração de dentes. “Precisei fazer um tratamento dentário e perdi muito sangue, recebi transfusão e fiquei um tempo internado.” O período complicado vivido por Ivar aflora as recordações das conversas que tinha com o pai nos momentos de dor intensa. “Quando dava um derrame nas articulações, não tinha medicamento — ficava uma, duas semanas, sentindo dor. Meu pai, hoje falecido, sempre dizia que um dia teria um medicamento para tirar aquela dor. E, hoje, a gente tem!”
Apesar da realidade mais difícil, os pais de Ivar mantiveram a fé e buscaram o melhor para os filhos, incentivando e os encorajando para um futuro digno e feliz, sempre com muito carinho e paciência. Para quem vivenciou toda essa trajetória de superar dificuldades, comemorar 60 anos de idade é uma vitória. Casado há quase 30 anos e com um filho de 10, Ivar conta que, na infância, seus pais comentavam que os médicos diziam que eles não viveriam mais de 15 anos. “E aqui estamos vivos pela graça de Deus. Sou muito grato. Eu não tenho dúvidas de que, se cheguei até aqui, foi também pela fé e orações. Sempre tive a família como alicerce. Houve muitos momentos difíceis, senti muitas dores, recebi a unção dos enfermos três vezes, mas estou aqui sem lamentar ou me fazer de vítima, mas sim para ser um sinal de alegria e paz.”
Oferecendo colares femininos populares, como pingentes, gargantilhas e chain necklace. Compre joias em uma variedade de metais e pedras preciosas para qualquer ocasiãoA VIDA APÓS O FATOR VIII
O tratamento da hemofilia evoluiu muito nos últimos anos no País, consistindo na reposição dos fatores de coagulação que são deficientes no organismo do paciente. Na hemofilia A, a pessoa deve repor o fator VIII; na hemofilia B, o fator IX. Os fatores de coagulação são fornecidos pelo Ministério da Saúde e entregues gratuitamente pelos hemocentros da cidade na quantidade específica para o tratamento do paciente. “Em Passo Fundo, o hemocentro foi criado em 1998 e desde que comecei a tomar o fator, há mais de 20 anos, nunca mais precisei internar.” No caso de Ivar, a mudança no tratamento da hemofilia, a partir da década de 1990, proporcionou melhor controle da hemofilia e mais qualidade de vida. Apesar de todos os avanços no tratamento, a dor é uma sensação constante que acompanha os pacientes com hemofilia que não tiveram acesso ao tratamento preventivo antes de 2011/2012. “Ainda tenho muita dor nas articulações — tornozelos, cotovelos, joelhos — devido às sequelas. Tem dias em que é bem difícil me locomover e andar, mas mudou bastante porque hoje tenho o fator em casa e faço a profilaxia”, explica Ivar. Dessa forma, ele faz a prevenção de hemorragias, e, assim como Ivar, muitas pessoas que convivem com a hemofilia aprendem a autoaplicação do fator de coagulação, o que possibilita autonomia e independência. “A profilaxia foi como renascer, vida nova, como o alimento e a água que necessitamos todos os dias para sobreviver. Sem fator, não há vida para quem tem hemofilia. Ter o medicamento em casa nos dá segurança, qualidade de vida, prazer e alegria de viver.”
FAMÍLIA E HEMOFILIA
Quem enfrentou a hemofilia antes da existência dos fatores de coagulação tinha maior probabilidade de desenvolver hemartroses, as consequências e complicações musculo- esqueléticas mais frequentes nesses pacientes – 80% das hemorragias acontecem nas articulações. O irmão mais velho de Ivar sofre com sequelas mais graves. “Meu irmão é cadeirante. Ele é mais velho e teve alguns problemas em decorrência da hemofilia. Quando tinha 11 para 12 anos, paralisou a perna direita. Há uns anos, ele caiu e fraturou a perna, colocou placa, mas após dois anos deu rejeição. Ele passou um momento bem difícil e não voltou mais a andar.”
Na família Rizzi, além do irmão mais velho com a hemofilia, Ivar tem um sobrinho e um sobrinho-neto, respectivamente filho e neto da irmã mais nova. Os dois nasceram após o início das profilaxias com os fatores de coagulação e desde a descoberta realizam o uso dos medicamentos atuais para estabilizar a coagulação e prevenir sangramentos. Não tiveram que enfrentar o procedimento com a transfusão de sangue, plasma ou crioprecipitado. “O tratamento deles é bem mais tranquilo”, avalia o tio. Quanto mais cedo for iniciado o tratamento profilático, menores são as possibilidades dos sangramentos fatores de coagulação. A cautela vai acompanhá-lo por toda a vida, principalmente para evitar consequências mais severas com o passar dos anos. “Todos nós temos nossa história, com alegrias e tristezas, e devemos ter orgulho dela e que sirva para ajudar outras pessoas a dar um sentido em suas vidas”, completa Ivar.