NA BATALHA PELO EMPREGO
16.04.2023
| Avanços na ciência e direitos |
Além de driblar as dificuldades no mercado de trabalho, as pessoas com hemofilia precisam superaropreconceito de alguns empregadores
Por Leila Vieira
Ter um emprego e uma carreira profissional é o sonho de milhões de brasileiros. No País, quase 12 milhões de pessoas estão desempregadas e buscam uma recolocação no mercado de trabalho, de acordo com pesquisa divulgada em dezembro de 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar das dificuldades, houve uma ligeira queda na taxa do desemprego no final do ano passado, o que trouxe uma esperança para quem continua atrás de um emprego formal. Se o caminho do trabalhador comum ao procurar emprego é cheio de obstáculos, as pessoas com hemofilia, além de ultrapassar essas dificuldades, precisam lidar ainda com o preconceito de algumas empresas. O mercado de trabalho nem sempre é o mais receptivo para a pessoa que tem algum tipo de deficiência física ou intelectual. No caso das pessoas com hemofilia, alguns empregadores ainda acham, por falta de informação e preconceito, que elas representariam um peso ou que não renderiam igual às demais pessoas. Uma parcela que sofre com isso são aquelas pessoas com hemofilia que não tiveram acesso à profilaxia antes de 2011 e 2012 e que, por isso, desenvolveram deficiências físicas decorrentes das hemorragias articulares, que ocorrem em 80% dos pacientes não tratados.
A inserção no mercado de trabalho para as pessoas com hemofilia não costuma ser fácil. “A principal preocupação é com os pacientes que já têm sequelas. Na maioria dos casos, é possível enquadrar as pessoas com hemofilia nos critérios de pessoas com deficiência (PCD)”, explica o procura- dor do trabalho, Rodney Lucas Vieira de Souza. Atualmente, no Brasil, a Lei 8.213/91 obriga que as empresas com 100 ou mais empregados reservem de 2% a 5% do quadro de funcionários para pessoas com deficiência e essa porcentagem varia de acordo com a quantidade de trabalhadores. Em 2018, o Ministério Público do Trabalho (MPT), que busca promover a inclusão e a igualdade no trabalho, organizou em Belo Horizonte (MG) uma audiência pública para entender as dificuldades dos pacientes com hemofilia no Brasil. A audiência contou com a participação da Federação Brasileira de Hemofilia (FBH), do Centro dos Hemofílicos do Estado de Minas Gerais (CHEMINAS) e de associações de anemia falciforme. O carioca Lucas Thomaz, de 23 anos, é prova de que é possível se sair bem na área profissional e manter o tratamento adequado para controlar a hemofilia e os episódios de hemorragia. Trabalhando no setor administrativo de uma grande empresa do Rio de Janeiro (RJ) há quatro anos, ele foi um dos contemplados pela parceria do Hemorio com uma consultoria de RH para inserir os pacientes no mercado de trabalho e foi contratado para uma vaga de PCD. “Eu colocava meu currículo nas empresas, mas ninguém me chamava. Nesse meio tempo, conheci a parceria do Hemorio com essa empresa e fui convidado para participar de uma palestra. Lá mesmo nós fizemos uma dinâmica e a responsável já me indicou para o processo seletivo de uma empresa”, relembra.
Começando como auxiliar administrativo, em pouco tempo ele foi promovido e a vivência na área fez com que Thomaz buscasse aprimorar mais sua formação. Desde 2018, ele cursa faculdade de administração. O diploma, diz, pode proporcionar um salto ainda maior para a carreira. “Dentro da empresa vi que, com a administração, consigo crescer porque lá tem plano de carreira”, reforça o jovem, que faz parte de uma parcela da população com hemofilia que iniciou o tratamento logo após a descoberta, nos primeiros sintomas. Em relação às limitações desenvolvidas por causa da hemofilia, que costumam impedir o acesso dos pacientes ao mercado de trabalho, o jovem sente apenas um pouco de dor e desconforto ao andar. “Quando entrei na empresa, as pessoas já sabiam da minha condição. Até mesmo na entrevista, conversei com a pessoa responsável pelo departamento de saúde da empresa”, conta.
PARCERIA COM RH
Os encontros mensais feitos pelo Hemorio em parceria com essa consultoria de recursos humanos (RH), buscam encaminhar os pacientes com hemofilia para as vagas destinadas às pessoas com deficiência (PCD). “Incentivamos muito a formação profissional porque facilita a vida dos pacientes”, destaca a enfermeira Sônia Saragosa, do Hemorio. A assistente social Márcia Pereira, também do Hemorio, explica que a equipe multidisciplinar trabalha com foco na educação de pacientes e familiares, procurando direcionar a escolha profissional para alguma função que não represente risco iminente. E esses riscos são os pontos de atenção na hora de definir a profissão das pessoas com hemofilia.
Nas últimas décadas, o tratamento profilático adequado e ininterrupto melhorou consideravelmente a qualidade de vida desses pacientes, mas, vale ressaltar, é necessário manter o cuidado no ambiente de trabalho para evitar hemorragias. E a escolha de uma profissão onde seja possível manter o cuidado é determinante para que as pessoas com hemofilia sejam inseridas no mercado de trabalho. Por isso, atividades que exijam força física excessiva, carregamento de peso ou grandes deslocamentos a pé de forma rotineira devem ser evitadas.
A rede de apoio familiar é funda- mental, principalmente em relação à educação das pessoas com hemofilia. Por isso, a adesão ao tratamento preventivo é imprescindível, uma vez que evita a ocorrência de sangramentos e, assim, afastamento da escola e do trabalho. Com isso, se amplia a manutenção da frequência escolar e no emprego, dando continuidade à capacitação e desenvolvimento do paciente sem interrupções, aumentando suas oportunidades no mercado de trabalho.
Algumas instituições de ensino e empresas ainda conhecem pouco a realidade atual dos pacientes com hemofilia, o que provoca uma barreira na hora de encontrar um emprego acessível. Os empregadores precisam saber que a pessoa com hemofilia pode desempenhar bem suas funções, pois hoje existe tratamento domiciliar disponível, diferente do que era no passado. “A educação de todos é um grande desafio para os profissionais e associações que se dedicam a essa causa”, afirma Sônia
O QUE MUDOU?
A partir da década de 1990, a vida das pessoas com hemofilia melhorou após a introdução dos medicamentos para tratamento dos distúrbios de coagulação do sangue: os fatores de coagulação. Thomaz, por exemplo, nasceu em 1996 e seu diagnóstico ocorreu aos nove meses de vida, idade em que começou a usar os medicamentos. Desde 2012, com a implantação da profilaxia, ele faz uso preventivo dos fatores para evitar sangramentos. “Faço a profilaxia em casa antes de ir ao trabalho. Não me atrapalha em nada”, explica.
Antes desse tratamento, os pacientes com hemofilia apresentavam quadros de internação com frequência. O motivo principal era a infusão do crioprecipitado, que só podia ser realizada dentro de uma instituição hospitalar. Naquela época, o tratamento acontecia por demanda, ou seja, após a ocorrência de uma hemorragia. Essa era a razão mais comum para que os pacientes desenvolvessem sequelas, lembra Márcia: “Desde a implantação do Programa de Profilaxia para Pacientes com Hemofilia Grave pelo Ministério da Saúde em 2011, se observou uma redução na ocorrência de artropatia hemofílica e sangramentos que possam interferir negativamente na qualidade de vida dos pacientes”.
O Programa foi um divisor de águas na vida de quem vive com a hemofilia. “Com a profilaxia e a liberação das doses domiciliares, treinamos o paciente e seus familiares para aplicações endovenosas. As pessoas com hemofilia puderam trabalhar, estudar, se exercitar, brincar e participar de atividades corriqueiras entre amigos que não eram possíveis antes, além de viajar curtas e longas distâncias, pois podem levar sua terapia de reposição para qualquer lugar do mundo”, salienta Sônia.
Como as dificuldades de procurar um emprego podem abalar o ânimo e a confiança das pessoas, é importante estabelecer uma rede de apoio, principalmente com parte da equipe de assistência de saúde que auxilia no tratamento das pessoas com hemofilia. “O conselho que dou para quem busca um emprego é entrar em contato com instituições que trabalhem com pessoas com hemofilia, porque podem conhecer uma empresa que faça recrutamento. E sempre ser sincero com o empregador sobre sua situação e as dificuldades existentes para evitar futuros problemas na empresa”, aconselha Thomaz.
ACIONE O MPT EM CASO DE DISCRIMINAÇÃO
A Secretaria do Trabalho, vinculada ao Ministério da Economia, é o órgão destinado à fiscalização do cumprimento da legislação pelas empresas. “A Constituição Federal veda qualquer ato discriminatório na admissão dos trabalhadores com deficiência”, reforça o procurador do trabalho Rodney Lucas Vieira de Souza. Você pode acionar o Ministério Público do Trabalho (MPT) para denunciar casos de discriminação ou qualquer outra irregularidade nas relações trabalhistas.